No mundo da Inteligência Artificial, por que devemos nos importar com Dados Pessoais?

Há pouco mais de uma década, as companhias petrolíferas reinavam na lista das maiores empresas de capital aberto do mundo. A Exxon, acostumada a ocupar posições de destaque, puxava uma lista de gigantes que incluía a Petrochina e a Shell. Dentre as cinco maiores, a única empresa de tecnologia era a Apple, que acabara de gerar frustração no mercado ao lançar o IPhone 4S, num momento em que o mundo esperava ansiosamente pela quinta versão do famoso smartphone. Simbolicamente, foi nesse momento que a companhia lançou a Siri, assistente virtual do sistema operacional iOS, uma aplicação incipiente de inteligência artificial.

Já em 2016, o cenário era absolutamente diferente. A Apple estava acompanhada no topo de outras quatro empresas de tecnologia: a Alphabet, a Microsoft, a Amazon e o Facebook.

Finalmente, a mudança da economia se fazia perceptível ao grande público. A máxima de que “os dados são o novo petróleo”, que fora cunhada em 2006, foi levada para a mídia de massa por uma célebre matéria do periódico The Economist, que ainda hoje gera debate e interesse.

Muito embora se possa discutir até que ponto a analogia é realmente verdadeira, não há dúvidas quanto ao valor e à importância dos dados, que, uma vez extraídos e devidamente refinados, podem ser utilizados como combustíveis para iniciativas das mais diversas, que vão desde o simples encaminhamento de propagandas personalizadas até a configuração de políticas públicas mais eficazes.

Apesar disso, as pessoas em geral ainda têm dificuldades para visualizar as implicações desta nova realidade. Em verdade, é difícil até mesmo identificar quais são os dados que estamos constantemente gerando e cedendo para órgão públicos, grandes corporações e, até mesmo, pequenos e obscuros desenvolvedores, que ganham espaço em nossos dispositivos com jogos e aplicativos banais enquanto, furtivamente, buscam capturar os nossos contatos, as nossas agendas e redes sociais.

Muitos estudos já foram realizados a respeito do fenômeno que pode ser chamado de paradoxo da privacidade, segundo o qual as preocupações pessoais concernentes à privacidade raramente se traduzem em comportamentos efetivos de resguardo ou proteção. Esses estudos normalmente desaguam na conclusão de que as pessoas tendem a sobrevalorizar a sensação de comodidade em detrimento da privacidade.

Um professor da Universidade de Columbia recentemente escreveu que, se fosse dada às pessoas a escolha de pagar pelos aplicativos gratuitos e pelos serviços on line em troca da proteção absoluta dos seus dados pessoais, elas provavelmente recusariam, preferindo efetuar o pagamento com os seus dados pessoais.

Tudo indica que essa conclusão é verdadeira. Mesmo depois da entrada em vigor do RGPD, na Europa, e da LGPD, aqui no Brasil, a necessidade de proteção dos dados pessoais ainda não foi devidamente compreendida pelo grande público.

Essa dificuldade provavelmente se deve ao fato de que os dados pessoais são intangíveis por sua própria natureza, e é sempre muito difícil lidar com conceitos intangíveis, especialmente quando geram consequências igualmente intangíveis.

Por conta disso, algumas boas iniciativas têm sido desenvolvidas. Uma delas, muito bem-humorada e altamente impactante, produziu um vídeo usando uma padaria comum como cenário. Ao tentarem comprar pão, os consumidores são surpreendidos pela balconista com perguntas como: pode me dar o seu número de telefone? Pode me dizer onde estava ontem, à meia-noite? Pode me dar o endereço da sua irmã?

São perguntas altamente invasivas, e imediatamente consideradas inapropriadas pelos consumidores. Ou seja: bastou que as pessoas fossem confrontadas concretamente para que percebessem o quão sensíveis são os dados que ofertam livremente no ambiente virtual. Contudo, nos próximos tempos, a tendência é a de que essa consciência seja ampliada e disseminada. Em primeiro lugar, porque mais e mais reportagens e campanhas de cunho educativo deverão ser publicadas.

Em segundo, porque as consequências advindas dos incontáveis tratamentos que submetem os dados pessoais passarão a ser concretamente experimentadas pelas pessoas, em especial pela explosão das aplicações que utilizam a tecnologia chamada de Inteligência Artificial. Por exemplo: as capas dos maiores portais de notícias já dão destaque, diariamente, para diversos sistemas computacionais que, utilizando Inteligência Artificial, efetuam tarefas antes inimagináveis, como calcular as penas de pessoas condenadas pela Justiça criminal, fazer a avaliação comportamental dos candidatos a uma determinada vaga de emprego, construir robôs de interação para atendimento a consumidores, e muito mais!

Além disso, há o contraponto, que ainda se percebe em estágio bem inicial: se os dados pessoais têm elevado valor econômico, nós não deveríamos receber por eles?

De um ponto de vista dogmático, é preciso reconhecer que juristas têm identificado, já há algum tempo, uma tendência de patrimonialização dos direitos da personalidade, e, talvez, a tutela patrimonial dos dados pessoais seja o ponto definitivo de inflexão.

Na prática, já se veem iniciativas que ultrapassam o modelo de remuneração pela produção de conteúdo, e alcançam verdadeira monetização dos dados pessoais propriamente ditos. Talvez a primeira delas tenha sido o Data Coup, autointitulado o primeiro mercado de dados pessoais do mundo. E há várias outras, sendo que, nos últimos tempos, foi possível acompanhar diversas pautas relacionadas à remuneração que os usuários de redes sociais como o Facebook poderiam vir a receber, pelo simples fato de passarem pelas suas timelines.

Há poucas semanas, aliás, fomos surpreendidos com a notícia de que centenas, talvez milhares de brasileiros venderam os seus olhos (na verdade, cederam imagens das suas írises) para uma empresa norte-americana, que reconhece estar formando um banco de dados de amplitude global. Dados biométricos por pagamentos em dinheiro, à vista!

Esse contexto bem intrincado – no qual a quantidade de dados e de tratamentos cresce exponencialmente, e no qual a conscientização das pessoas passará a exercer uma pressão expressiva, maior do que qualquer esforço governamental de caráter regulatório – é evidentemente desafiador, mesmo para as sociedades que têm uma longa tradição na proteção legal concedida aos dados pessoais.

Será que o Brasil está preparado para essa nova realidade?

Na verdade, questionar, simplesmente, se o Brasil está preparado para essa nova realidade não parece ser o questionamento correto.

Por aqui, acabamos de criar a nossa primeira legislação de proteção de dados, e ainda temos dificuldades em reconhecê-la como um direito fundamental e autônomo.

O questionamento mais adequado parecer ser: estaremos preparados a tempo?

Para que estejamos, as nossas autoridades, nossas empresas e nossas start-ups terão que dar um salto, um verdadeiro leapfrog, a partir da situação atual de inconsciência e de ausência de regulamentação, diretamente para um estágio avançado, que se possa equiparar ao dos mercados mais desenvolvidos.

Infelizmente, não teremos tempo para nos preparar de forma linear e progressiva; teremos que o fazer surfando a onda do tsunami.

Fale com o autor: Celso L Simões Fh csimoes@tmsadv.com.br